terça-feira, 24 de março de 2020

O triângulo do dragão

É preciso sempre lembrar: ao artista não cabe tão só o domínio técnico do instrumento (âmbito da prática) - o que é imprescindível em certos casos, embora não em todos- ou ele será apenas um técnico. É necessário criatividade composicional (âmbito da intuição). Todo ser humano é criativo, a criatividade lhe é inerente. Mas ela é no ser potência, sendo necessário exercitá-la, portanto - o que numa sociedade voltada para o trabalho e não para o labor, para a alienação e não para a integração, exige esforço hercúleo. E a criatividade prescinde desse museu de coisas vividas que cada um carrega dentro de si. Sendo assim, além da técnica e da criatividade, temos então o conhecimento (âmbito da razão, o que dá significado para a experiência) que advém da experiência única adquirida. Toda experiência é singular, mas a técnica e a criatividade é domínio de todos. Agora temos claro: a obra de arte se dá no encontro ou no entrelaçamento entre a domínio técnico, o exercício criativo e o conhecimento construído pela experiência. É o triângulo do dragão que contém em seu centro a obra de arte, produto da vontade.

Meu conceito de arte

É preciso que a sociedade e a “instituição arte” pense o artista como trabalhador, mas antes, que o artista pense a si próprio como trabalhador - um trabalhador muito particular, um produtor de esteses, de caráter inquieto, curioso e avesso a acomodação. Um trabalhador que aponta novos caminhos, desvela contradições, propõe reflexões, põe à luz opacidades, recompõe o sujeito. Capaz de transformar a realidade através do seu próprio trabalho – como todo trabalho é - o artista, mais além, assume a sua condição de “antena do mundo” e deflagra “guerra” ao sistema, onde sua arma é a arte. Este artista se vê envolvido em luta permanente com a sociedade e a “instituição arte” que por sua vez sempre buscam trazer o artista para formas canônicas de representação - gostos e estilos historicizados e preservados por grupos sociais dominantes.
O artista sabe – ou deveria saber - que a representação em geral é uma forma de ação política que não se desvincula jamais das condições materiais e históricas dadas. A velhas formas de representação: de uma arte “inocente”, a-histórica, transcendental, intuitiva, subjetiva - herança do individualismo burguês - já não mais se sustentam. O artista é consciente do seu trabalho, que produz por um processo sempre refletido e objetiva uma arte que quer a divergência, quer ser a tudo antagônica, sendo em tudo alternativa ao estabelecido, sendo em tudo luta. Ao invés de aceitação, ajustamento, efeito, formação, reprodução. Uma arte desse tipo deverá ser, necessariamente, não encomendada. Arte que propõe esteses e que ao mesmo tempo produz conhecimento capaz de transformar a realidade.

A arte é essencialmente imoral

Mesmo sendo o homem um ser moral, a arte jamais deve ser moralizante, mas sim libertadora. Se a obra reflete a moral do autor é porque o homem como ser moral não pode jamais fugir dela, mas esta é uma moral do indivíduo que não pode ser entendida como uma tentativa universalizante de moral. A moral universalizante é a norma coletiva, a regra social. A moral do artista é intrínseca a sua obra, se é relevante é porque existem ali valores que coadunam com um coletivo de elite que pretende através da obra do artista afirmar suas normas, universalizando a obra do artista quando esta quer apenas se singularizar. Academias de letras e de artes pretendem isso: universalizar a arte moralizando-a. Nós, os artistas imorais, queremos o oposto.

O artista é um crédulo incorrigível

Se para alguns o artista é um cético - que por não crer em nada ele cria sua própria crença -, para mim o artista é, na verdade, um crédulo incorrigível, em tudo ele crê pois para ele qualquer coisa é uma possibilidade de sonhar, é um infinito de realizações.

Criticidade de alto nível

Ter criticidade não é o bastante. É preciso colocar sua criticidade à prova para construir uma criticidade de alto nível.

Sobre o infantilismo na arte

O olhar infantil sobre o mundo é puro e sintético, mas tende sempre para a evolução e complexidade – não é fixo, estático ou inerte. Uma obra infantilista apela para o puro e sintético das formas e sempre acaba tendo uma boa aceitação. Mas, em geral é inerte, repetindo-se à exaustão. Esse tipo de arte ganha facilmente a atenção da massa por não exigir desta maior conhecimento, consciência histórica. O esforço de conhecer é, quase sempre, dor e sofrimento para os que não estão afetivamente ligados ao objeto, ao conteúdo. É uma obra que não requer grande tempo de observação, de modo que o todo da obra é apreendido de imediato e a reação é instantânea, no nível rasteiro do entretenimento. Pode até mesmo ganhar a atenção da elite econômica e do entretenimento, que não é, necessariamente a elite intelectual. O valor monetário chama mais a atenção desses. Na obra infantilista, muito em voga entre artistas de todo o Brasil e com grande aceitação comercial, sintetiza-se a estesia pelo uso das cores e formas das mais simples, obtendo-se com tamanha redução um nivelamento que se faz por baixo. Lubrifica-se o aceite depurando-o.

O que é a poesia?

A poesia é a infância da palavra.